A catástrofe de estar viva.
E o desabafo mais sincero que sou capaz de fazer em meio a tanta dor.
Você já se perguntou quem você seria se não tivesse sido tremendamente traumatizado?
O quão brilhante você teria sido se não tivesse passado anos da sua vida tentando apenas sobreviver?
Será que você gostaria das mesmas coisas que gosta agora? Ou seria quem é hoje?
Com uma frequência muito maior do que gostaria de admitir me pego fazendo essas perguntas. Pensando em quem eu seria se a primeira emoção que eu fosse capaz de assimilar não fosse medo. Me pego me questionando pois o sonho da minha vida era ser uma pessoa leve. Dessas que fazem a vida parecer mais fácil. Que faz os dias parecerem menos longos. Que parece estar sempre levando a vida com a calma de quem detem todas as respostas.
Mas eu não sou. Eu sou um conglomerado de medos, ansiedades, e paranoias que precisa constantemente silenciar a primeira voz que se manifesta em minha mente, e que quase sempre é bastante trágica.
Se alguém se atrasa para um compromisso comigo, a minha primeira reação não é pensar que a pessoa pode ter perdido a hora, entrado numa rua errada, ou esquecido o compromisso. A minha primeira reação é ter certeza absoluta que ela morreu no caminho. Que algum acidente grave aconteceu. E, principalmente, que a culpa é toda minha.
Me sinto constantemente exausta do fardo de sempre estar pronta para desgraças. Mas, quando eu me dou ao direito de não pensar na pior hipótese possível, ela sempre me acerta numa velocidade tão grande que passo meses catando os caquinhos quebrados no impacto. Me perguntando como eu não percebi o impacto vindo, e jurando a mim mesma nunca mais passar por isso, e, em seguida, entrando novamente num ciclo de medos, ansiedades e paranoias cada vez mais intensas, cada vez mais sangrentas, e cada vez mais mortais.
As vezes me questiono se sempre fui assim ou se me tornei assim. Eu fui um bebê chorão que se tornou uma criança melancólica, que cresceu uma adolescente depressiva, e se tornou uma adulta suicida. E sempre quis acreditar que ao decorrer da minha vida não era possível perceber no que tudo aquilo iria resultar. Mas olhando essas fotos, essas 3 versões minhas que há muito não existem mais, percebo que sempre foi nítido a quem estivesse atento a enxergar.
E acho que, no fundo, hoje eu sou atenta demais, pois passei anos da minha vida sendo criada por pessoas que eram atentas de menos. Talvez parte de mim tente compensar anos de negligência me preparando para os piores resultados possíveis. Tentando me preparar e me proteger para o que parece inevitável. Mas não existe compensação para trauma.
Não tem como compensar o desaparecimento do brilho no olhar de uma criança de 8 anos. Não tem como diminuir a solidão e o desespero de uma criança de 10 anos que não se sente segura na sua própria casa, na sua própria cama, na sua própria mente. E isso é o pior: não ter como compensar.
Porque eu estou cansada de andar por ai carregando meus traumas como uma mortalha, tentando aprender com eles, tentando supera-los, tentando sobreviver a eles, mas acordando todos os dias encoberta, sufocada e destruída por eles.
Eu não sei quem eu seria se não tivesse sido traumatizada, mas eu sei quem eu sou após ter sido negligenciada e abusada física, psicológica e sexualmente: eu sou os fragmentos de alguém que eu jamais conheci, sou o medo constante do futuro, e a tristeza avassaladora pelo passado, sou o pavor de existir, e o desespero constante em pensar que a minha vida pode acabar a qualquer minuto, mas, ainda assim, desejar esse fim constantemente.
Eu sou um acúmulo de ideias sombrias, de pensamentos catastróficos, sentimentos negativos, e lembranças adoecedoras. Eu sou o abandono do meu pai. A negligência da minha mãe. O abuso do meu padrasto. O discurso de ódio do meu avô. A negligência e humilhação das minhas tias. A rejeição dos meus primos. As agressões físicas e verbais dos meus colegas de classe. Eu sou a menina parada na porta, com seu vestido vermelho e a tiara combinando, implorando a Deus por socorro.
Não sei quem eu seria se não fosse quem eu sou agora, mas sei que me sinto exausta de ser quem eu sou.